Deus é fiel Essa frase se tornou tão corriqueira
que perdeu sua força de expressão. Temo que seu significado esteja
tão diluído, a ponto de não sabermos mais o que ela significa. A
ideia que essa frase passa, pelo menos nos contextos onde a tenho
lido e ouvido com frequência, é a de que Deus tem uma obrigação
para comigo e é poderoso o suficiente para não fazer feio.
Espera-se que Ele seja capaz de resolver os meus problemas e me tirar
das enrascadas, inclusive daquelas em que eu me meti por desconhecer
ou desobedecer a Sua Palavra. O que essa frase significa, realmente?
Em que sentido Deus é fiel? E, se Deus é fiel, até que ponto posso
confiar nele? Sua fidelidade tem algum sentido prático para mim?
Divindades pagãs Os deuses pagãos eram tiranos. Por
serem moldados segundo a imagem do próprio homem, eles eram
instáveis, imprevisíveis, vingativos. Seus seguidores viviam
apavorados, tentando evitar a sua ira e agradá-los a qualquer preço,
mesmo que isso lhes custasse os próprios filhos.
Esses deuses não estão reduzidos à
mitologia grega ou romana, limitados a alguma etnia africana ou
hindu, ou restritos às crenças animistas de alguma tribo indígena.
Eles estão entre nós; sempre estiveram, em todas as culturas e
épocas. O apóstolo Paulo revela o que há por trás de cada
divindade pagã: “Antes digo que as coisas que os gentios
sacrificam, as sacrificam aos demônios, e não a Deus (1
Co 10:20).”
Qualquer ser humano, por mais caído,
perverso ou pervertido que seja, ainda é melhor que um demônio.
Porque sobre aquele homem ainda repousa a graça salvadora de Deus,
enquanto sobre o demônio já recaiu o juízo de Deus. Por isso,
estes são incapazes de qualquer ato de bondade ou misericórdia, e
quando oferecem algo, ainda que pareça bom, vão querer em troca
tudo o que poder arrancar de sua vítima. Isso explica porque há
sempre um componente de medo nas relações com as divindades pagãs
em todas as culturas.
Quando pensamos em divindades pagãs,
pensamos nos deuses de outras religiões ou de outras épocas. Não
percebemos que eles estão sendo substituídos por outros ídolos,
como dinheiro, poder, sucesso, beleza. Por isso, não é diferente o
sentimento das pessoas para com Deus, quando a relação com Ele se
limita a uma troca de favores e benesses.
Exemplos da crueldade dos deuses
falsos Se admitirmos que dinheiro, poder,
beleza são ídolos modernos, em que sentido podemos dizer que são
tiranos? Que exemplos daremos?
Não podemos negar que, em outras
épocas, o sacrifício de crianças foi praticado. A própria Bíblia
registra alguns casos; duramente repreendidos por Deus, diga-se de
passagem. “Porque edificaram os altos de Baal, para queimarem
seus filhos no fogo em holocaustos a Baal; o que nunca lhes ordenei,
nem falei, nem me veio ao pensamento (Jr 19:5).”
De certa forma, crianças continuam
sendo oferecidas em holocausto aos deuses quando são entregues à
prostituição, recrutadas para as chamadas guerras santas, na
África e no Oriente Médio, ou quando morrem nas filas dos hospitais
porque o dinheiro foi desviado para os bolsos de algum corrupto.
Família continuam sendo sacrificadas
em nome do sucesso. Mulheres e homens se revelam cada vez mais
dispostos a sacrificarem o próprio corpo no altar da beleza. A
chamada tirania da beleza,referindo-se à
excessiva busca do corpo perfeito, tem sido objeto de vários
estudos científicos,
demonstrandoque a
magnitude do problema extrapola a dimensão espiritual e passa a
interferir na dimensão social, da saúde e da psicologia.
Vejamos
o que diz um estudo publicado na
revista Polêmica, da UERJ:
“As recentes, sucessivas e dramáticas
mortes de jovens com transtornos alimentares demandam de todos nós
uma reflexão mais profunda acerca do que significa a ditadura
estética a qual uma parcela significativa de jovens
mulheres parece estar submetida. Vale lembrar que, a prevenção
destes quadros clínicos é dificultada, sobretudo nos extratos menos
favorecidos da população, na medida em que não são entendidos
como uma doença, mas como um estilo de vida, socialmente reforçado,
como característico das pessoas de sucesso - traduzido muitas vezes
no sonho de virar modelo e com isso conseguir: ascensão social,
fama, sucesso, visibilidade e dinheiro.”[1]
E
mais: […] “o
desejo no interior dessa cultura
do consumo que o mercado institui está associado ao ideal
cultivado da fabricação de um ser perfeito. Dietas, exercícios
físicos intensos e muita disposição para sacrifícios e dores, são
requisitos cobrados e estimulados[…]”[2]
Até
mesmo a busca desenfreada do prazer e da felicidade, a qualquer
custo, se torna um tirano na nossa vida. Sobre isso, um artigo de Ed
René Kivitz cita dois autores, um deles um monge Krishna: [...]
mais do que o dinheiro [a
felicidade], é a
nova ostentação dos ricos. Eles estão na mídia e exibem seus
carros de luxo, sua vida amorosa extraordinária, seu sucesso social,
financeiro ou mesmo moral, quando colaboram com instituições
beneficentes. A felicidade virou parte da comédia social.[3]
É por causa da
felicidade que aspirantes espirituais oram, trapaceiros trapaceiam,
[...] caridosos entregam-se à caridade, bêbados bebem, ladrões
roubam e penitentes se arrependem.[4]
Exemplos da bondade de Deus Diferentemente,
o nosso Deus é aquele que devolve os filhos às suas mães – como
vimos na ressurreição
dos filhos da viúvas de Serepta e de Naim, da filha de Jairo e na
ressurreição de Lázaro – e se preocupa em garantir o sustento
das viúvas, dos estrangeiros e dos órfãos. Ele instituiu na Lei
(Torá) dada por intermédio de Moisés. “Quando no teu
campo colheres a tua colheita, e esqueceres um molho no campo, não
tornarás a tomá-lo; para o estrangeiro, para o órfão, e para a
viúva será; para que o Senhor teu Deus te abençoe em toda a obra
das tuas mãos. Quando sacudires a tua oliveira, não voltarás para
colher o fruto dos ramos; para o estrangeiro, para o órfão, e para
a viúva será. Quando vindimares a tua vinha, não voltarás para
rebuscá-la; para o estrangeiro, para o órfão, e para a viúva
será. (Dt 24:19-21).”
O sacrifício exigido por Deus Ao contrário das outras divindades,
escravizadoras, Deus pede que o nosso sacrifício seja abrir a mente
para perceber as cadeias perniciosas do pecado, que tentam nos
embaraçar (Hb 12:1), e entender que o modelo de pensamento que
governa nosso mundo não leva à felicidade, mas à frustração e à
destruição do corpo, da família e, por consequência, da
sociedade. Somente libertos dessas prisões, que atuam no campo da
nossa mente e espírito, seremos capazes de adorar a Deus de forma
consciente e racional, que é o seu desejo. “Rogo-vos, pois,
irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto
racional. E não sede conformados com este mundo, mas sede
transformados pela renovação do vosso entendimento, para que
experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus
(Rm 12:1-2).”
Quem disse que Deus é fiel? a) Pessoas que experimentaram a
Sua fidelidade: Moisés: Saberás, pois, que o
Senhor teu Deus, Ele
é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até
mil gerações aos que o amam e guardam os seus mandamentos (Dt 7:9). Davi: Pois a tua misericórdia se eleva até aos céus, e a tua
fidelidade, até às nuvens (Sl 57:10). Outros
salmistas: Porque o SENHOR é bom, a sua misericórdia dura para sempre, e,
de geração em geração, a sua fidelidade (Sl 100:5). Porque mui grande é a sua misericórdia para conosco, e a
fidelidade do SENHOR subsiste para sempre (Sl 117:2). Jeremias
(que sofreu quase tanto quanto Jó): As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos
consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; Novas são
cada manhã; grande é a tua fidelidade (Lm 3:22-23).
b) O próprio Deus, Quando fala de Sua
própria fidelidade, por meio do profeta Oséias, Deus a compara a um
casamento, usando inclusive o verbo “conhecer”, que na Bíblia
remete à relação sexual entre marido e mulher. É digno de nota
que a palavra “fidelidade” no contexto do versículo está
associada a uma aliança de casamento, portanto um compromisso de
ambos os cônjuges. "E desposar-te-ei comigo para sempre; desposar-te-ei comigo em
justiça, e em juízo, e em benignidade, e em misericórdias. E
desposar-te-ei comigo em fidelidade, e conhecerás ao Senhor (Os 2:19-20)."
O que esperar da fidelidade de Deus
Como pai amoroso, Deus promete zelar de
cada um de nós e deseja que que a nossa vida esteja sujeita à Sua
cuidadosa interferência. Não que Ele queira nos manipular, como a
marionetes, mas espera que depositemos nossos cuidados e preocupações
em Suas mãos poderosas. Todas as pessoas anseiam pela segurança que
o Todo-poderoso oferece. Nesse sentido, vemos pessoas deixarem
a Bíblia aberta no Salmo 91, como se isso, por si só,
garantisse que as promessas contidas naquele salmo se tornem realidade em suas vidas.
De fato, são muitas as promessas de
Deus para nós:
nos ajuda a suportar os
sofrimentos da vida (1 Pe 4:19)
No que isso difere do pensamento
original por trás da frase “Deus é fiel”? No tipo de
relacionamento que mantemos com Ele. Como antecipamos acima,
fidelidade tem a ver com relacionamento profundo, aliança e
confiança mútua, como acontece no contexto de um casamento
saudável. É inconcebível esperar fidelidade de Deus quando nós
mesmos somos infiéis. Quando somos infiéis podemos esperar colher o
fruto de nossas próprias escolhas: “Entretanto, porque
eu clamei e recusastes; e estendi a minha mão e não houve quem
desse atenção, Antes rejeitastes todo o meu conselho, e não
quisestes a minha repreensão, Também de minha parte eu me rirei na
vossa perdição e zombarei, em vindo o vosso temor. Vindo o vosso
temor como a assolação, e vindo a vossa perdição como uma
tormenta, sobrevirá a vós aperto e angústia. Então clamarão a
mim, mas eu não responderei; de madrugada me buscarão, porém não
me acharão. Porquanto odiaram o conhecimento; e não preferiram o
temor do Senhor: Não aceitaram o meu conselho, e
desprezaram toda a minha repreensão. Portanto comerão do fruto do
seu caminho, e fartar-se-ão dos seus próprios conselhos (Pv
1:24-31).”
Em teologia
chamamos
isso de lei
da semeadura: colhemos
aquilo que plantamos.
A fidelidade de Deus não nos poupa
do sofrimento
O capítulo 2 de Oséias mostra o
sofrimento da nação de Israel quando escolheu se afastar de Deus. A
princípio pode parecer que Deus é vingativo mas, prosseguindo na
leitura, percebe-se o grande amor que Ele devota ao seu povo. O que
aprendemos nesse capítulo é que não há como evitar as
consequências do erro, porém, Deus usa esse sofrimento para
atrair-nos de volta para si, o único que pode e deseja ardentemente
cuidar de nós com seu amor incondicional. Deus não provoca o
sofrimento, mas permite que ele, algumas vezes, seja a ferramenta
para tratar a nossa infidelidade crônica, como fez com Israel.
Como podemos viver de modo fiel As Escrituras
estão repletas de ensinamentos quanto a isso; por exemplo, o Sermão
do Monte, começando no capítulo 5 de Mateus. O capítulo 5 da
primeira carta aos Tessalonicenses trata, de forma muito didática,
do estilo de vida cristã ideal, especialmente os versículos 8 a 24.
Devemos entender que a nossa fidelidade a Deus não pode estar
condicionada às circunstâncias da vida, nem às benesses materiais
decorrentes da providência divina. Se permanecermos nesse nível,
nosso relacionamento com Ele será deveras superficial e não muito
diferente daqueles que adoram os deus falsos.
Nossa atitude deve
ser semelhante à do profeta Habacuque. As notícias não eram nada
animadoras: “Ouvi isso, e o meu íntimo estremeceu, meus lábios
tremeram; os meus ossos desfaleceram; minhas pernas vacilavam (Hb
3:16 NVI).” Contudo,
suas palavras seguintes
revelam seu nível de confiança na fidelidade de Deus: “Mesmo
não florescendo a figueira, não havendo uvas nas videiras; mesmo
falhando a safra de azeitonas, não havendo produção de alimento
nas lavouras, nem ovelhas no curral nem bois nos estábulos, ainda
assim eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha
salvação. O Senhor Soberano é a minha força; ele faz os meus pés
como os do cervo; ele me habilita a andar em lugares altos (Hb
3:17-19 NVI).”
Portanto,
a
questão não é o quanto Deus é confiável, mas o quanto somos
fiéis
a
Ele.
Quando
nossa crença nele se elevar da mera expectativa de sucesso para um
sentimento de confiança, baseada no conhecimento de Sua natureza e
bondade, e nossa incerteza, fragilmente
equilibrada
sobre
uma presunção do tipo eu mereço, se transformar
em certeza, alicerçada na profunda convicção de que somos
amados pelo Pai, então entenderemos o que significa: “Deus é
fiel”. Nesse
caso, o Salmo 91 se
tornará
realidade em nossas vidas, mesmo que a Bíblia esteja momentaneamente
fechada.